LinkWithin

Blog Widget by LinkWithin

.

sábado, 3 de janeiro de 2009

AS CURAS ESPIRITUAIS DE JOÃO DE DEUS - II

Abadiânia, interior de Goiás (115 quilômetros de Brasília). Um complexo de prédios conhecido como "Casa de Dom Inácio de Loyola" se destaca na paisagem pela impecável limpeza. Um dia comum começa às 8 da manhã, com a visita de cerca de 800 pessoas. Na maioria estrangeiros, eles vêm em busca das cirurgias espirituais, visíveis e invisíveis, efetuadas por um fazendeiro conhecido como João de Deus. Neste caso, o João que atrai multidões – diz já ter atendido 10 milhões de pessoas, o que exigiria receber mais de 500 por dia, todos os dias, durante 50 anos – se chama João Texeira de Faria. Já foi tema de uma reportagem da TV americana ABC, em 2005, e é o protagonista de um documentário do canal Discovery.

João de Deus chega à Casa cedo, por volta das 7h30 da manhã, e senta-se num sofá do pequeno escritório anexo aos salões principais. Nas paredes, imagens de santos, retratos de gente atendida por ele, uma foto sua ao lado do médium mineiro Chico Xavier, diplomas de honra ao mérito emitidos por associações militares, entidades policiais e Câmaras de Vereadores. As paredes brancas com rodapé azul de 1 metro de altura, onipresentes na Casa, formam um corredor claustrofóbico que leva ao salão principal, onde cerca de 300 pessoas de todas as idades estão sentadas, de olhos fechados e em silêncio.

João não ergue a vista para quem o espera. Ele está descalço e navega em passos incertos até uma cadeira de espaldar alto. Ele chama dois de seus assistentes e dá uma mão a cada um. Estremece, revira os olhos, sacode os ombros e retesa os braços, que deixa cair, como se uma corrente elétrica passasse por seu corpo. Ele se recompõe. Até as 5 da tarde, estará em transe, atendendo as centenas de pessoas que formam uma fila em frente a sua cadeira. Entre os que o procuram estão pacientes de câncer, esclerose, paralisia cerebral, bócio, nódulos mamários, cefaléia, vertigem, dor abdominal, lombalgia, problemas oculares, aids. João diz não prometer curas, que segundo ele dependem “da vontade de Deus”.

A CIRURGIA - As cirurgias podem ser “visíveis” ou não. Nas visíveis, os procedimentos mais comuns são a introdução de uma pinça cirúrgica no nariz, a raspagem da retina ou a retirada de tumores com bisturi. Às vezes, João faz simples massagens na região onde o paciente reclama de dor. O médium pergunta, imperativo: “Cadê a dor?” Todos dizem não sentir mais nada. Em alguns casos, ele ordena a pessoas em cadeiras de rodas ou muletas que as abandonem e andem. Quando há cortes, ele costura a ferida com agulha e linha, e o paciente vai para uma sala de repouso. Se há sangue no chão, os auxiliares se apressam em limpá-lo com álcool de cozinha. Os instrumentos cirúrgicos não são limpos entre uma operação e outra.

Uma consulta sem cirurgia é mais rápida. João rabisca um papel, que é seu “receituário”, um garrancho ilegível. Seus auxiliares o traduzem. A prescrição é sempre o mesmo preparado de raízes e ervas ou um apontamento para uma cirurgia posterior. Quem passou por uma cirurgia espiritual é orientado a ficar 24 horas em repouso. A Casa também pede que não se interrompa o tratamento médico. A maioria das pessoas em busca de cura acaba ficando mais que uma semana em Abadiânia, a pedido das “entidades”. Ela também é incitada a permanecer na Casa durante vários dias, para uma “corrente de meditação”.

VIAGEM - Em uma das paredes da Casa há uma reprodução de um estudo publicado em 2000 na Revista da Associação Médica Brasileira. O trabalho é, supostamente, uma tentativa de investigar cientificamente as cirurgias espirituais de João de Deus. Um de seus autores, Alexander Moreira de Almeida, hoje é professor de Psiquiatria na Universidade Federal de Juiz de Fora. Ele já escreveu artigos em outras publicações com títulos como “Visões espíritas dos distúrbios mentais no Brasil” e “A mediunidade vista por alguns pioneiros da área mental”. O estudo de 2000 não chegou a conclusão nenhuma. Uma das co-autoras, Maria Ângela Gollner, se diz constrangida pelo uso do artigo. “Ele fez daquilo uma máquina de propaganda”, disse, referindo-se a João de Deus. Ouvido por ÉPOCA, Almeida não quis revelar sua crença religiosa e disse ignorar que o artigo esteja afixado na Casa Dom Inácio.

A popularidade de João de Deus no exterior se deve em grande parte à ampla cobertura da imprensa internacional em 1991, quando a atriz americana Shirley MacLaine tratou-se com ele (supostamente foi curada de um tumor abdominal). De lá para cá, o boca a boca, as reportagens e os livros publicados nos EUA e na Europa se encarregaram de espalhar a fama. No site da Amazon, encontram-se pelo menos três livros e dois DVDs em inglês sobre João de Deus, com títulos como John of God: the Brazilian Healer Who’s Touched the Lives of Millions (João de Deus: o Curandeiro Brasileiro que Tocou as Vidas de Milhões).


ESPIRITUALIDADE - Caçula de cinco irmãos, João conta que passou pela primeira “experiência transcedental” aos 9 anos. Segundo ele, a mãe, dona Iúca, o levou para visitar parentes no vilarejo de Nova Ponte, em Goiás. João diz que, em um dia sem nuvens, previu que muitas casas seriam destruídas por uma tempestade. A muito custo, convenceu dona Iúca a ir embora. Segundo ele, em poucos minutos nuvens negras surgiram, e a chuva arrasou 40 casas. João conta que, aos 15 anos, começou a incorporar espíritos. O trabalho de cirurgião espiritual começou nessa época. Seu relato é assim: certo dia, quando tomava banho de rio em Campo Grande (atual Mato Grosso do Sul), encontrou uma mulher bonita com quem passou o resto do dia conversando. No dia seguinte, voltou ao rio para procurá-la, mas ouviu apenas a voz dela, ordenando que comparecesse a um centro espírita chamado Cristo Redentor. Chegando lá, desmaiou. Quando acordou, horas depois, envergonhado, atribuiu o desmaio à fome. Os membros do centro acalmaram-no e disseram que João havia sido possuído por um espírito e, durante o transe, feito cirurgias espirituais, dizendo ser o rei Salomão, da Bíblia.

João diz que não gosta de ser chamado de curandeiro ou milagreiro. Mas eram esses os nomes que anunciavam sua chegada a cidades da região Centro-Oeste na década de 60. Ele atendia doentes em centros espíritas ou casas de umbanda. Ele se declara católico. Anda com uma imagem de Santo Agostinho no bolso do jaleco. Faz o sinal-da-cruz antes de dormir. Diz que gosta de dançar em serestas. Mora em Anápolis, a 40 quilômetros de Abadiânia, para onde volta dirigindo o próprio utilitário esportivo no fim do dia. Tem nove filhos e administra quatro fazendas de gado. Tentou se aventurar no ramo da mineração de ouro. Afirma que sofreu prejuízos e decidiu se restringir à pecuária. Segundo conhecidos, é um ótimo negociante. “As doações não bastam para pagar os funcionários”, diz. “Então, às vezes, tenho de pegar do que eu ganho. Vender uns bois. A despesa aqui é de R$ 90 mil, R$ 100 mil por mês. Nossas contas estão abertas para quem quiser ver.”

CURA? - Nos três dias em que esteve na Casa de Dom Inácio, a reportagem ouviu dezenas de pessoas, com os mais diferentes tipos de enfermidade. Todas pareciam tranqüilas e sorridentes. “Os médicos disseram que meu filho não viveria muito”, diz a austríaca Alice Gabriel. É uma história semelhante à de muitas mulheres que acompanham os filhos à Casa. Julian, o filho de Alice, tem 13 anos e vive preso a uma cadeira de rodas devido a um caso severo de distrofia muscular. Alice e o marido, Walter Reschl, viram João de Deus na Alemanha há dois anos. Já haviam levado o filho a curandeiros na Inglaterra e Itália, sem resultado. Foram a Abadiânia em 2006 e estão ali há um ano. “Em poucas semanas, a doença se estabilizou”, diz Alice. Ruzica Wiesen, nascida na antiga Iugoslávia e naturalizada americana, diz que foi diagnosticada com artrite reumatóide há 19 anos. Apesar de levar uma vida saudável como professora de ioga em Chicago, afirma que subitamente perdeu a capacidade de andar sem a ajuda de muletas. “Descobri que os problemas são espirituais.” Ruzica diz que voltou a andar desde que passou a freqüentar a Casa, há dois anos. “Tenho fé que foram os espíritos que me ajudaram. Isso basta.” Phoebe Dixon, uma australiana de 20 anos, veio ao Brasil acompanhar a professora de Psicologia da faculdade, que tem câncer de fígado. “Quando ouvi que havia algo assim no mundo, resolvi conferir com meus próprios olhos”, diz a estudante.
Revista Época(edição 484 - 25/08/07). Leia texto integral

0 comentários: